terça-feira, março 08, 2011

Cumplicidade

"E canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu canto é de ninguém. Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia." (C. Lispector)

“Eu vi – pensou Lilia – e era uma vida bem pequenininha”.  Havia a certeza fácil, quente, carinhosa de ter visto, e de ter sido solidária, ainda que distante e impossível. Impossível? Quase isso. “Tenho vontade de dizer cada vez menos”, descobriu. Alisava o vestido azul, sentada na cama fofa. “Não há mesmo muito a dizer”, Lilia achava, e pousou os olhos úmidos na janela entreaberta. Domingo morno, quieto. Um carro ou outro passando de longe, uns ruídos vagos. Lilia quieta – não falaria nada. Tentou silenciar a mente, sem sucesso. Exercício complicado esse, de não pensar em nada, porque sempre se está pensando em algo, ainda que seja: estou respirando. Estou viva. Estou com frio. Estou sozinha. Desistiu. Desistia sempre.

“Se eu disser alguma coisa, estarei me traindo”, cogitava. Passou os olhos pelo quarto bem arrumado, limpo. Uma tristeza fina por dentro – imaginava o vazio como um lugar cheio dessas tristezas assim fininhas, umas agulhinhas prateadas espetando por todo lado, incômodas, chatas. Mas não dizia nada. “Dentro do meu silêncio completo estarei inteira, única, e talvez mais forte”. Só que, as agulhinhas. A dor delicada, lenta. “Essa coisa que dói é como uma cobra em um caixote”, pensou, “uma cobra verde-escura aprisionada em um espaço pequeno e abafado, lutando para sair”.

Fez força para levantar da cama. Achou que era bom um banho, que um banho seria uma saída, quase uma solução. “Uma vida pequenininha e comum, sem esperanças, sem planos, sem esse transtorno de pensar, de saber das coisas todas, de querer coisas. Uma vidinha assim mesmo bonita, simples. Cheia de amor”, imaginou.

No banho parecia estar mais consciente de si e do mundo, com a clareza que a água traz. Até fez planos. Pensou em sair. Em esquecer. Tudo era melhor antes dos passarinhos, isso era fato. Tudo doía igual, mas era melhor porque não havia passarinhos, pardaizinhos a fazer casa em lugar de tão difícil acesso, parecia até perigoso ali, no meio daqueles fios todos, mas por outro lado era uma esperteza de ave construir um ninho naquele meio-cano de metal, onde estavam ajuntados os fios que saíam do prédio e se ligavam aos fios do poste. Era um bom abrigo. Lilia sabia que, antes de tê-los visto, tudo era mais escondido, escuro. “É ruim jogar luz onde não é necessário”, achou, enquanto ensaboava-se.

          Rafael estivera ao alcance de um telefonema. Sempre estivera. Jantar em algum lugar confortável, tomar uma taça de vinho, essas coisas tão ordinárias. Mas Lilia enxergava bem o tamanho da ponte. Não bastava certas atitudes simples quando a coisa toda era,  oh, meu Deus, tão intrincada... Quando se tornara assim? Por que – só isso precisava de uma resposta – por que tudo tinha obrigatoriamente que ser desse jeito esquisito? O cerne da dor é quase sempre uma pergunta como esta; Lilia demorara a aceitar. “Não é tão fácil quanto poderia parecer”, pensou, “e vai me deixar um gosto de fracasso na boca, um gosto que não sai, não sai, não sai.”

           Após o banho, vestiu uma roupa nova. Precisava deixar a casa o quanto antes. Não sem dar uma olhadinha nos pardais, novamente. Gostava deles, da maneira como faziam suas casinhas e cuidavam da família. Gostava quando via um ou outro entrando no abrigo construído em lugar tão pequeno – “mas pardais não se machucam, são feitos de ar e penas, praticamente”,  - esticando-se para penetrar naquele recôndito à prova de chuva e sol forte. Pareciam felizes, na medida em que as aves podem parecer felizes. As vidinhas minúsculas, ínfimas, carentes apenas de insetozinhos para comer e uma casa para morar, uma casa pequena, um buraco na parede, qualquer coisa, como pedem a Deus tão pouco, e isso tudo fez Lilia chorar, porque ela era uma mulher que queria tanto, como qualquer outra pessoa, queria tanto e sempre, queria coisas que não eram exatamente “coisas” e sim abstrações, como nas aulas de Português: amor é substantivo abstrato porque não podemos pegar, cheirar, comer o amor, certo? Só sentir. E tudo o que se sente é abstrato, quase não existe. Logo, o sentir é também uma invenção das nossas mentes, desejosas de inventar. Lilia inventava demais.

         Ligou o rádio. Começava Good day sunshine. Sentiu uma alegria meio besta, uma nostalgia e ao mesmo tempo um desejo de desligar-se da nostalgia, quem é que explica? “Eu quero tocar nas cordas das coisas”, sentiu, “e fazê-las soar a melodia da vida”. Desejos de sair, correr. A nostalgia de um tempo em que não sabia de nada, nem ler e escrever. Mas terminou a música e outra começou: In My Life. Beatles sabia ferir, ou era ela que estava sensível, inconscientemente dedicada à caça de abstrações? “A melodia da vida, um piado de pardal, isso é que é”, Lilia pensou, e sentiu-se contente do pensamento rápido, da certeza profunda de que a simplicidade era a maravilha, e que toda maravilha trazia em seu cerne uma simplicidade de pardal.

            Mas era necessário sair, e quando o último acorde soou, Lilia desligou o rádio. Abriu a porta do elevador, ingressou na estranha viagem espaço-temporal dos elevadores, aqueles setenta segundos do nono andar ao térreo tão relativos, tão maleáveis. Os pardais no ninho, os Beatles e o vestido azul, tudo perfeito não fosse o ângulo humano, o verme do desejo, a obscuridade daquilo que se quer calar e gritar.

          Era melhor, achou Lilia, deixar de lado essas coisas bobas e seguir adiante. Mas,  na calçada domingueira, aquele silêncio plácido, o jogo de sol e sombra, um canto de bem-te-vi, um casal de borboletas alaranjadas voejando daqui pra lá, de lá pra cá, e o vento sacudindo as folhas das árvores, essas figuras todas que insistimos em fingir que não percebemos, mas sim, percebemos e sentimos vergonha de tanto sentimento. “Vou telefonar”, ela pensou. “Mas, pra ter coragem também é preciso coragem”. Pegou o celular nas mãos, olhou o número, olhou para o alto, olhou de novo o número. Era isso, ou nada. E o nada é ruim. Ligou.

        Esperar que atendesse era como os setenta segundos para cima ou para baixo no elevador. O coração, a cabeça, o estômago. Primeiro a cabeça, em seguida o coração. Atendeu: agora o estômago. A identificação e o cumprimento confuso, a falta de assunto, um tipo de convite feito, uma quase resposta com outra pergunta, um pequeno silêncio, um riso nervoso e seco, um murmúrio, outra pergunta, o estômago, ruído-ruído, uma frase completa, uma despedida curta, beijo-beijo-tchau-tchau.

              Feito. E, de repente, uma frouxidão do espírito...

(Um sorriso cristalino, daqueles que forçam as maçãs do rosto e chegam a repuxar a pele, meio envergonhados. O mastigar dos lábios para conter esse sorriso, um cigarro, era urgente um cigarro, e também esconder-se por trás de óculos escuros bem grandes, o caminhar automático para qualquer direção, uma sede atroz, uma satisfação temporária, cabeça em stand-by, o coração mais ativo do que nunca, uma coca-cola bem gelada com limão na primeira lanchonete, uma frase de Guimarães Rosa, as mariposas no estômago, a coragem necessária, a cumplicidade com os pardaizinhos que tocavam suas existências sendo felizes mas sem sabê-lo, a vontade de também ser um pardalzinho a comer insetos e a piar, piar, piar por tudo e para tudo, esse canto perfeito, música das esferas, o nó na garganta, a alegria de ser gente, a tristeza de ser gente, a consciência da fatalidade e do fim de todas as coisas, a coca-cola gelada, mais um cigarro, a compreensão de tudo, um certo coquetismo diante de uma vitrine, o passo mais lento, o sabor do dia, uma coisa intensa, um riso por dentro, o que a vida quer da gente é coragem, e agora a recompensa da coragem, a glória imensa de se saber corajosa e a ausência do medo de ter medo, e tudo era o pardal que voava direto para uma árvore em busca de alimento para os filhotinhos que piu-piu-piu esganiçavam-se em seu canto secreto.)



Três meninos

São três garotos idiotizados caminhando pela avenida. Lembram os três ratos cegos da fábula, com um quê de sordidez. Olham para o chão e parecem trigêmeos, frutos de uma gestação doente, talvez miserável e fraca. Caminham com uma segurança de quem é aleijão e tem que aprender a cuidar de si, andar, comer, falar, ir ao banco, lidar com a troça alheia, com o desprezo dos saudáveis, com o riso e o espanto das crianças. Estão dolorosamente seguros por um cruel senso de sobrevivência – a prova maior de que Deus é mau.

Também eles são só crianças, doze anos, treze, mas podem ser mais velhos, um ligeiramente maior do que o outro, e estão sempre juntos. Passam todos os dias no mesmo horário – ou serei eu que estou sempre no mesmo lugar, na exata hora em que aqueles três meninos passam com suas sobrancelhas grossas e unidas e os seus cabelos iguais?

Primeiro vi os rostos e depois o olhar para baixo, a cabeça inclinada em um ângulo artificial, pendendo suavemente. Hoje os ouvi falar, mas não entendi uma palavra porque só falam entre si. Isso porque têm a mesma sina, além da mesma origem. A pele deles é manchada como se carregassem vermes; a coluna, arqueada como se andassem com o peso de se refletirem todo o tempo, um morando no interior das deficiências do outro para sempre. Parece improvável que se separem algum dia. Vivem idênticos e morrerão idênticos, talvez no mesmo desastre de trem, ou padecendo da mesma enfermidade. O caso é que não posso escapar da observação. Em um primeiro momento parecem ser hostis; depois, são apenas meninos tortos e, no instante seguinte, voltam a ser hostis – por causa das sobrancelhas unidas, do erro três vezes repetido, o mesmo erro, no mesmo lugar, no mesmo ovo, no mesmo ventre da mesma mulher. Cabeças pendendo amarelas. Os cabelos também são os mesmos, escuros e foscos, cortados por mãos muito inábeis...Como se eles não precisassem ficar bonitos porque nunca serão bonitos e retos, coluna no lugar, olhos crucificados no horizonte, no caminho que seguem todos os dias, não se sabe para onde vão, nem o que levam nos bolsos sujos das calças de malha...

Um deles veste a camisa de um time de futebol, mas tenho certeza de que ele não torce para esse time, e nem acredita nele. Todos rotos, manchas marrons no peito e o amarelo da pele manchada de vermes. São meninos delgados que andam em trio olhando para o cuspe negro, os papéis e os vestígios de droga e de misérrima solidão.

Ofendem a minha vista, os três meninos reféns dos vermes. Apáticos e de olhos fundos, íris nadando em um globo estourado em veias azuis, antigas veias, antiga esclerótica amarelenta e endurecida pelo que olham – nunca levantam a cabeça, porque não podem ou porque não há nada para se ver além do buraco na calçada, dos sapatos melados de barro e tristeza, da água empoçada e das fezes dos cães que também seguem olhando para o chão.



domingo, março 06, 2011

Analogia do afeto


A memória é mesmo uma coisa admirável. Armazenamos tudo, absolutamente tudo que já vimos e ouvimos durante a vida e o HD não se esgota. Claro que não conseguimos recuperar alguns arquivos, muitos até, quando queremos, mas isso não significa que eles não estejam lá. É que há muito espaço, muitas pastas e subpastas, e o sistema nem sempre roda no máximo de sua capacidade. Há processadores e processadores, afinal.

O que surpreende mesmo é quando uma coisa que nem sabíamos que sabíamos acaba aparecendo, vindo à tona em uma conversa absolutamente diversa daquilo que acaba de emergir, nos deixando um tanto abobados e pensando no porquê de aquele arquivo específico haver sido encontrado e aberto, sendo que não demos nenhum comando para que isso acontecesse. Ou quando tais arquivos abrem-se e anunciam uma insônia infernal, bem no momento em que estamos quase dormindo. Ou à beira de um colapso nervoso. Ou no meio de um momento extremamente prazeroso. Ou no meio de uma prova, de uma faxina, de um cigarro, de um telefonema. Simples, assim: o arquivo se abre sozinho e quando tentamos fechar às vezes trava, não fecha, a gente tenta reiniciar, uma série de desagradáveis atos internos para apagar aquilo que não é possível apagar.

Ficamos meio bestas, sem saber como tudo aconteceu, mas é culpa de um mecanismo que os cientistas deveriam tentar transpor aos sistemas de informática: a abertura on demand, ou arquivos irmãos, ou qualquer coisa do tipo. Como quando pesquisamos algo no YouTube, e na próxima visita ele nos sugere coisas que, segundo o sistema, guardam alguma relação com aquilo que vimos anteriormente. Não se sabe quais os critérios que estabelecem tal relação, mas às vezes dão a impressão de serem tão aleatórios quanto o que nos faz abrir arquivos mentais sem querer, impulsionados por uma coisa mínima, quase imperceptível.

Se eu vou à feira, por exemplo, aquele cheiro todo, primeiramente, me agrada muito. Logo em seguida, os arquivos da infância começam a se abrir, um após o outro, e muitos deles não tem nenhuma relação aparente com o fato-local "feira livre de quinta de manhã na Doze de Outubro". Me ocorrem cenas de roupas brancas no gramado, um espantalho de pano que meu pai fez para mim, a cartilha Caminho Suave, uma melancia de brinquedo que tinha olhos e rodinhas e eu fingia que era meu cachorro, ou uma mariposa presa em um vidro, ou uma manhã gelada qualquer, ou uma casa da época, outra casa, e mais outra, e rostos de parentes inúmeros, e objetos inúmeros, e flores, e dores, e ruas que talvez nem existam mais, e adultos, e crianças, e a viagem continua, e os arquivos não param de abrir, abrir, abrir. Até que começam a ficar esmaecidos e se fecham, para um dia voltarem a se abrir, não se sabe como nem quando, nem porquê.

Mas não falo de Windows: esses arquivos não se abrem como janelas, não senhor. São nuvens transparentes que se sobrepõem, se ligam umas às outras, se encaixam, se deslocam de cá para lá. Uma confusão bem maior do que algumas janelas abertas e um sistema travado. Também não falo de navegação em nuvem, porque isso implica em associações paradigmáticas, controladas por tecnologia, e, ao que eu saiba, ainda não somos completamente robots. 

Trataria-se de Navegação Afetiva, talvez. Inventem aí, senhores programadores.

Não, sim

Não vou dizer que está faltando erotismo na vida. Não vou dizer que todos estão muito apressados e tecnológicos e conectáveis. Não vou dizer que o mundo anda se dissolvendo em cataclismas e que a humanidade é a grande culpada. Não vou dizer que existe uma conspiração social para nos tornar falsamente felizes. Não vou dizer que andamos muito bobos, muito crédulos, muito pouco críticos. Não vou dizer que estamos vivendo uma era de grandes farsas e pouca sinceridade. Não vou dizer que o mundo perde a cada minuto sua inocência primitiva. Não vou dizer que nos violentamos todo dia no trabalho, nas relações superficiais, no desamor de uma casa triste que nos recebe no final do expediente. Não vou dizer que o animal vale mais que o ser humano. Não vou dizer que a TV dá câncer na alma, que a internet nos engoliu, que a música das rádios é um lixo comercial. Não vou dizer que estamos em um período de terrível incerteza, que não nos permite parar e respirar em paz. Não vou dizer que as crianças não brincam mais, que os adolescentes são idiotas, que os adultos são amargos e covardes. Não vou dizer que a minha geração é uma geração perdida, e que os sonhos morreram muito antes de acordarmos. Não vou dizer que falta sol nas almas, que falta quietude, que falta solidão saudável, que falta álcool responsável, que falta dinheiro, paixão, verdade, romance, tudo isso. Não vou dizer que estamos enganados. Não vou dizer que estamos fodidos, mal pagos. Não vou dizer que a resposta está dentro e fora. Não vou dizer para olharmos as pequenas coisas da vida, observar borboletas, a chuva na janela, um caracol na parede úmida. Não vou mencionar filosofias orientais, teosofias ocidentais, comunhão universal. Não vou criticar a superexposição geral, a cretinização da juventude, a estupidez dos velhos. Não vou dizer que estamos doentes no fundo dos nossos espíritos e que a medicina não vai dar jeito. Não vou dizer que amamos odiar o conforto asfixiante dos pequenos apartamentos sem quintal. Não vou dizer que o outono e a primavera sumiram dos seus respectivos meses. Não vou questionar a religiosidade histérica, o ceticismo medroso, a nuvem de perguntas sem resposta sobre o que somos, de onde viemos, para onde vamos. Não vou falar sobre amor impossível, sobre ódios eternos, rancor versus perdão, a necessidade de flores, as limpezas mentais. Não vou falar da necessidade de doação, de afeto, de entrega. Não vou falar, não.
E se eu não disser nada disso, sobra alguma coisa? Ah, sim. Sempre sobra.

Das epígrafes

Nada me alegra mais do que conseguir uma epígrafe perfeita para um texto. E eu gosto bastante de usar epígrafes, esses pequenos cabeçalhos extraídos de textos de outros autores que nos dão uma pista (ou uma não-pista) sobre o que vamos ler em seguida. Nem sempre é fácil achar a frase ideal. Vai muito da sorte e da intuição. 

Mas ocorre às vezes ficar com uma frase de algum autor, ou um verso de uma música, um diálogo de cinema, nadando no cérebro por dias, semanas. Ocorre querer usá-los em alguma coisa. Você tenta e tenta e a frase não serve. Um lindo dia você escreve um texto e saca do bolso a frase, e a coloca lá, como epígrafe. Lê e relê o texto com epígrafe, sem epígrafe, e sente que não fosse o pequeno cabeçalho, algo importante estaria faltando para a compreensão do que você escreveu. É como se aquela frase, verso, citação, estivesse realmente esperando por você, pelo seu texto, para ficar feito uma nuvenzinha desalinhada no alto da página, a dar as coordenadas ao leitor. 

Creio que frequentemente a epígrafe agrada mais ao escritor que a utilizou do que ao sujeito que vai ler. Não importa; o autor fica contente quando a epígrafe casa-se com o texto abaixo, dá-lhe sentido, expande-o em uma direção meio caleidoscópica que confunde, esclarece, desvia, completa. 

E olha: bem eu gostaria que, de algum texto meu, fosse extraído um pedacinho pra servir de nuvem nos escritos de alguém. 

Olhando pessoas


Não é sempre que ocorre, mas a frequência é grande. Olhar pessoas e classificá-las, defini-las. Em momentos mais atentos isso pode ser uma espécie de pequeno inferno: colocar nome, número, grau, etiqueta e enfim arquivar aquela pessoa que se observa é uma tarefa que toma energia, mesmo que não se perceba no instante em que acontece. Causa um certo desgaste psicológico, alguma melancolia.

Penso na razão de fazer isso. E concluí, em uma viagenzinha de trem, que minha resposta hoje é bem diversa da resposta que eu obteria de mim mesma anos atrás. Hoje eu acho que sei - ou melhor, descobri - porque classifico tanto e tão metodicamente as pessoas ao redor. E a resposta é: classifico as pessoas não por elas em si, pelo que são, e sim pelo que eu sou ou não sou. Para tentar saber mais.

Quando olho para alguém e começo aquele processo de inventar uma história, ou de tentar adivinhar a história real que este alguém possui, na verdade estou praticando um exercício de auto-inclusão ou auto-exclusão. Preciso saber o que faz do outro um ser diferente de mim, ou igual. Preciso saber se eu me encaixaria na mesma "gaveta" que aquela pessoa. Saber se a etiqueta que coloco nela também me serviria. 

Com o tempo, a atividade de catalogação de seres humanos tornou-se mais complexa. Agora, eu penso em termos de tempo. Um dia, penso eu, um dia eu serei companheira de gaveta, de etiqueta, daquela pessoa? Ou, será que já fui? E enquanto vou ouvindo música pela rua, em um transporte coletivo, em uma fila de banco ou qualquer outro lugar que me permita avaliar uma pessoa por pelo menos três minutos, fico analisando quais características do outro são minhas também, e em que tempo, em que lugar essa semelhança poderia acontecer efetivamente.

Não é fácil lidar com o fato de que a vida das pessoas desconhecidas não têm, em termos absolutos, nenhuma importância. O mais surpreendente é que isso deve acontecer com todo mundo. Temos a ilusão de nutrir algum interesse pelas pessoas que vamos encontrando por aí, mas me parece que o importante mesmo para nós que observamos é somente nós mesmos. O valor do outro só "vale" se existir em relação a mim. A história do outro me ocupa apenas e tão-somente se houver um eco, seja uma semelhança, seja uma diferença. Relativizo partindo do meu ponto de vista e meu umbigo é quem me dá a medida da importância que os outros terão para mim em determinado momento e sob determinadas circunstâncias. 

Não acho que isso seja "bom" ou "mau". Deve ser uma condição natural, inerente a todos, esse tipo de egoísmo (no sentido menos pejorativo possível, claro), esse olhar para dentro que para se completar depende de estendermos uma ponte instantânea para fora. Sem essas pontes não saberíamos de muita coisa sobre nós mesmos, se é que podemos considerar que sabemos, de fato, alguma coisa.

É um exercício de autoconhecimento, observar o outro em silêncio, pensar nele por alguns instantes, meter-lhe um rótulo, resenhá-lo, fotografá-lo, julgá-lo e guardá-lo em uma prateleira considerada adequada para aquele espécime analisado. E, a cada novo item nas prateleiras, acendemos, inconscientemente, uma lampadazinha bem fraca, de luz amarela, sobre a escuridão imensa, infinita, de dentro de nós. 





Querido Caio,



Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado,
E disse à minha alma: Quando abarcarmos esses mundos 
e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos? 
E minha alma disse: Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho. 

Walt Whitman


Tenho tanta, tanta coisa a lhe dizer que acho que esta carta será pequena. Não sei como estão as coisas por aí e se você terá tempo e condições para ler, e tudo mais. Mas te peço uns minutinhos para estas palavras, muito sinceras.

Olha, lendo as tuas cartas é como se você estivesse sendo radiografado, é lá que a gente sabe mesmo do verdadeiro Caio e fica mais próxima dos teus problemas, tuas soluções, o teu caminho em si. Uma pena que eu nunca tenha tido a chance de te enviar uma carta antes, é que quando eu soube de você já era um pouco tarde demais e você estava de partida. Faz tempo, 95, 96, e eu preciso mesmo te dizer o quanto "te gostei" logo de cara, daquelas coisas lindas no Caderno 2 que eu esperava ansiosamente ( não tínhamos internet, esse mundo era menos digital, difícil achar tuas coisas por aí).

Sabe, dá muita vontade de te encontrar e tomar uns drinks, eu sei que Sampa te oprime mas, olha só: um barzinho calmo, um jazz, sei lá, e alguns vinhos bons o suficiente, não tão caros que $$ você sabe, a coisa anda feia. Sem porres também. Beber e conversar, temperar a conversa com bebida e enfeitar a bebida com conversa. Já pensou? Será que dá?

Continua florista? Espero que tenha uma boa janela para um roseiral, coisa que nas metrópoles é artigo raro. Você tem ouvido o quê, de bom? E livros, meu querido, o que tens aí para me indicar? Acredite, estou pensando em te reler, mas o Morangos me parece tão juvenil hoje! Não é uma crítica feia, é só uma constatação do meu próprio envelhecimento. Ainda acho que deveria ser adotado nas escolas. A molecada anda TÃO idiota que você ficaria chocado. Hoje é só tecnologia, e falta, sim, alguma coisa de muito importante. A cabeça das pessoas mudou muito. Somos uma nova raça, Caio, você não faz a MENOR idéia. 

Os astros andam loucos, eu acho. Você poderia me dizer o que é que eu faço com essa Lua em Sagitário? Recomende algo, please. Fica difícil administrar  este virginianismo com sagitário chacoalhando tudo, uma insatisfação desgraçada e talvez, como você diz, tudo acabe em faxina, que a vida do Virgo é isso mesmo, a eterna busca da pureza.

Espero que você esteja puro, meu velho. Melhor mesmo que você esteja longe, por aqui tudo contaminado, barulhento, e você ficaria maluquinho. 

(Segue com esta carta umas folhinhas de plátano, direto de Higienópolis, e foi você quem descobriu, lembra? Lembra sua alegria?) 

E como vão os rapazes? E por falar em rapazes, e o amor? Corre solto? É possível? É sensual ou só ideal? Conte-me tudo-tudo, é muito importante saber dessas coisas.

Me diz: olhando daí, a vida não parece um tanto ridícula por aqui? Agora que você vê tudo diferente, não é estúpida essa nossa corrida? Me diz, Caio, o que vale mesmo-mesmo é o hoje? É a emoção sempre presente? É amar e ser amado? É satisfazer os desejos? Ou seria a virtude das igrejas, a santidade? Topa falar sobre tudo isso? Eu quero muito.

Vê se não demora a me responder e mande alguma coisinha daí, pra eu te sentir mais presente. Você deixou saudades, viu? Tanta gente fala de você... Não se se te entendem, mas falam. Você e a Clarice, como são pops hoje, mas, sei lá, acho que estão entendendo tudo pela metade - como sempre.

Te beijo, te abraço e te espero aqui quietinha.  

M.

PS: não esquece da lembrancinha, ok? Quelque chose jolie, et petite
PS2: vou juntar aqui umas sementes, não vou dizer que flores serão, mas plante em agosto. Para desabrocharem em setembro! 

A se crer em astrologia

Se quiser crer em astrologia, esteja preparado para ver todo mundo como pontos no céu. Vai analisar as pessoas a partir do zodíaco e misteriosamente - não precisa explicação para o mistério - verá que muita coisa se encaixa. Que o amigo de Virgem é igualzinho a você que também é Virgem, ou que o ascendente Aquário torna aquela pessoa geralmente comedida em um sujeito sem lei e sem rumo quando resolve se divertir. É ou não para se espantar?

A se crer na leitura dos astros, penso que faz todo o sentido ser Virgem-ascendente Câncer-Lua em Sagitário. Aliás, essa Lua explica tudo, tudo mesmo. Não fosse por ela, eu seria uma dona de casa exemplar, neurótica e cheia de filhos e festas de família, abandonando os amigos da juventude e não querendo saber de outras pessoas além dos familiares. Talvez trancasse os filhos em uma bolha antisséptica para o resto de suas vidas. Talvez desenvolvesse TOC ou outra síndrome qualquer. Possivelmente seria muito, mas muito chata, emotiva, chantagista, crítica, rainha da razão. Eu, hein?

Se for razoável crer nessa história de signos, a Lua em Sagitário me faz bem, embora me mantenha em um estranho equilíbrio de tendências opostas. Não poderia nem mesmo chamar de equilíbrio: talvez seja uma disputa interna entre Virgem crítica-frieza-resguardo-bastidores, Câncer amor-família-emoção-lágrimas e Sagitário aventura-prazer-descontrole-insistência. Se colocar em um liquidificador, temos aí uma mistura esquisita para administrar, ou seja, eu.

Morro de medo de arianos, sempre faço boas amizades entre os sagitarianos, acho os geminianos divertidos porém superficiais e desatentos, os leoninos são mesmo adoráveis para mim e os capricornianos, então, nem se fala. Peixinhos e aquários são grandes parceiros de conversa, cancerianos conheço poucos e talvez tenha magoado alguns, taurinos dão nos nervos de tanta teimosia, escorpianos me sufocam com o excesso de ciúme-possessão-ressentimento, librianos têm um refinamento natural que me agrada imensamente. Virginianos com luas e ascendentes favoráveis sempre são bons companheiros, caso contrário eu acabo me cansando deles - tanta frieza, tanta racionalidade, é lindo, mas a longo prazo o sagitário do meu mapa fica de saco cheio e pode eventualmente dar um coice.

Então, a se crer em Astrologia, preciso crer na frase de Caio Fernando Abreu em uma de suas cartas, na qual diz que para o virginiano tudo termina em faxina. É um fato: tudo, mas tudo mesmo, acaba assim, sendo varrido, limpo, purificado, arrumado. E é um fato também que a única coisa nesta vida que acalma um virginiano é limpar uma gaveta, lavar a louça da pia, tirar o lixo de dentro de casa. É quase libertador. Parece coisa de doido e talvez seja, mas, enfim, é possível lidar com isso.

Se você quiser acreditar um pouquinho, acredite e divirta-se fazendo piadas idiotas com seus amigos, analisando pretendentes, caçando assunto com as tias no Natal. Se prefere achar tudo uma balela, ok também, e talvez seja mais saudável. Se acha que é coisa de mulher, saiba que não conheço um homem que nunca tenha ao menos espiado o horóscopo meia-boca do jornal enquanto fingia ler os quadrinhos. Se quiser ou se já acredita muito-muito, cuidado com os pré-conceitos em relação às pessoas. Não é o caso de rejeitar um tal porque os signos não combinam. Isso seria uma estupidez, tendo em vista que a vida está aí para que coisas estranhas e combinações absurdas aconteçam.

De minha parte, venho constatando que, sim, morro de medo de arianos, sempre faço boas amizades entre os sagitarianos...