Cumplicidade
"E canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu canto é de ninguém. Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia." (C. Lispector)
“Eu vi – pensou Lilia – e era uma vida bem pequenininha”. Havia a certeza fácil, quente, carinhosa de ter visto, e de ter sido solidária, ainda que distante e impossível. Impossível? Quase isso. “Tenho vontade de dizer cada vez menos”, descobriu. Alisava o vestido azul, sentada na cama fofa. “Não há mesmo muito a dizer”, Lilia achava, e pousou os olhos úmidos na janela entreaberta. Domingo morno, quieto. Um carro ou outro passando de longe, uns ruídos vagos. Lilia quieta – não falaria nada. Tentou silenciar a mente, sem sucesso. Exercício complicado esse, de não pensar em nada, porque sempre se está pensando em algo, ainda que seja: estou respirando. Estou viva. Estou com frio. Estou sozinha. Desistiu. Desistia sempre.
“Se eu disser alguma coisa, estarei me traindo”, cogitava. Passou os olhos pelo quarto bem arrumado, limpo. Uma tristeza fina por dentro – imaginava o vazio como um lugar cheio dessas tristezas assim fininhas, umas agulhinhas prateadas espetando por todo lado, incômodas, chatas. Mas não dizia nada. “Dentro do meu silêncio completo estarei inteira, única, e talvez mais forte”. Só que, as agulhinhas. A dor delicada, lenta. “Essa coisa que dói é como uma cobra em um caixote”, pensou, “uma cobra verde-escura aprisionada em um espaço pequeno e abafado, lutando para sair”.
Fez força para levantar da cama. Achou que era bom um banho, que um banho seria uma saída, quase uma solução. “Uma vida pequenininha e comum, sem esperanças, sem planos, sem esse transtorno de pensar, de saber das coisas todas, de querer coisas. Uma vidinha assim mesmo bonita, simples. Cheia de amor”, imaginou.
No banho parecia estar mais consciente de si e do mundo, com a clareza que a água traz. Até fez planos. Pensou em sair. Em esquecer. Tudo era melhor antes dos passarinhos, isso era fato. Tudo doía igual, mas era melhor porque não havia passarinhos, pardaizinhos a fazer casa em lugar de tão difícil acesso, parecia até perigoso ali, no meio daqueles fios todos, mas por outro lado era uma esperteza de ave construir um ninho naquele meio-cano de metal, onde estavam ajuntados os fios que saíam do prédio e se ligavam aos fios do poste. Era um bom abrigo. Lilia sabia que, antes de tê-los visto, tudo era mais escondido, escuro. “É ruim jogar luz onde não é necessário”, achou, enquanto ensaboava-se.
Rafael estivera ao alcance de um telefonema. Sempre estivera. Jantar em algum lugar confortável, tomar uma taça de vinho, essas coisas tão ordinárias. Mas Lilia enxergava bem o tamanho da ponte. Não bastava certas atitudes simples quando a coisa toda era, oh, meu Deus, tão intrincada... Quando se tornara assim? Por que – só isso precisava de uma resposta – por que tudo tinha obrigatoriamente que ser desse jeito esquisito? O cerne da dor é quase sempre uma pergunta como esta; Lilia demorara a aceitar. “Não é tão fácil quanto poderia parecer”, pensou, “e vai me deixar um gosto de fracasso na boca, um gosto que não sai, não sai, não sai.”
Após o banho, vestiu uma roupa nova. Precisava deixar a casa o quanto antes. Não sem dar uma olhadinha nos pardais, novamente. Gostava deles, da maneira como faziam suas casinhas e cuidavam da família. Gostava quando via um ou outro entrando no abrigo construído em lugar tão pequeno – “mas pardais não se machucam, são feitos de ar e penas, praticamente”, - esticando-se para penetrar naquele recôndito à prova de chuva e sol forte. Pareciam felizes, na medida em que as aves podem parecer felizes. As vidinhas minúsculas, ínfimas, carentes apenas de insetozinhos para comer e uma casa para morar, uma casa pequena, um buraco na parede, qualquer coisa, como pedem a Deus tão pouco, e isso tudo fez Lilia chorar, porque ela era uma mulher que queria tanto, como qualquer outra pessoa, queria tanto e sempre, queria coisas que não eram exatamente “coisas” e sim abstrações, como nas aulas de Português: amor é substantivo abstrato porque não podemos pegar, cheirar, comer o amor, certo? Só sentir. E tudo o que se sente é abstrato, quase não existe. Logo, o sentir é também uma invenção das nossas mentes, desejosas de inventar. Lilia inventava demais.
Ligou o rádio. Começava Good day sunshine. Sentiu uma alegria meio besta, uma nostalgia e ao mesmo tempo um desejo de desligar-se da nostalgia, quem é que explica? “Eu quero tocar nas cordas das coisas”, sentiu, “e fazê-las soar a melodia da vida”. Desejos de sair, correr. A nostalgia de um tempo em que não sabia de nada, nem ler e escrever. Mas terminou a música e outra começou: In My Life. Beatles sabia ferir, ou era ela que estava sensível, inconscientemente dedicada à caça de abstrações? “A melodia da vida, um piado de pardal, isso é que é”, Lilia pensou, e sentiu-se contente do pensamento rápido, da certeza profunda de que a simplicidade era a maravilha, e que toda maravilha trazia em seu cerne uma simplicidade de pardal.
Mas era necessário sair, e quando o último acorde soou, Lilia desligou o rádio. Abriu a porta do elevador, ingressou na estranha viagem espaço-temporal dos elevadores, aqueles setenta segundos do nono andar ao térreo tão relativos, tão maleáveis. Os pardais no ninho, os Beatles e o vestido azul, tudo perfeito não fosse o ângulo humano, o verme do desejo, a obscuridade daquilo que se quer calar e gritar.
Era melhor, achou Lilia, deixar de lado essas coisas bobas e seguir adiante. Mas, na calçada domingueira, aquele silêncio plácido, o jogo de sol e sombra, um canto de bem-te-vi, um casal de borboletas alaranjadas voejando daqui pra lá, de lá pra cá, e o vento sacudindo as folhas das árvores, essas figuras todas que insistimos em fingir que não percebemos, mas sim, percebemos e sentimos vergonha de tanto sentimento. “Vou telefonar”, ela pensou. “Mas, pra ter coragem também é preciso coragem”. Pegou o celular nas mãos, olhou o número, olhou para o alto, olhou de novo o número. Era isso, ou nada. E o nada é ruim. Ligou.
Esperar que atendesse era como os setenta segundos para cima ou para baixo no elevador. O coração, a cabeça, o estômago. Primeiro a cabeça, em seguida o coração. Atendeu: agora o estômago. A identificação e o cumprimento confuso, a falta de assunto, um tipo de convite feito, uma quase resposta com outra pergunta, um pequeno silêncio, um riso nervoso e seco, um murmúrio, outra pergunta, o estômago, ruído-ruído, uma frase completa, uma despedida curta, beijo-beijo-tchau-tchau.
Feito. E, de repente, uma frouxidão do espírito...
(Um sorriso cristalino, daqueles que forçam as maçãs do rosto e chegam a repuxar a pele, meio envergonhados. O mastigar dos lábios para conter esse sorriso, um cigarro, era urgente um cigarro, e também esconder-se por trás de óculos escuros bem grandes, o caminhar automático para qualquer direção, uma sede atroz, uma satisfação temporária, cabeça em stand-by, o coração mais ativo do que nunca, uma coca-cola bem gelada com limão na primeira lanchonete, uma frase de Guimarães Rosa, as mariposas no estômago, a coragem necessária, a cumplicidade com os pardaizinhos que tocavam suas existências sendo felizes mas sem sabê-lo, a vontade de também ser um pardalzinho a comer insetos e a piar, piar, piar por tudo e para tudo, esse canto perfeito, música das esferas, o nó na garganta, a alegria de ser gente, a tristeza de ser gente, a consciência da fatalidade e do fim de todas as coisas, a coca-cola gelada, mais um cigarro, a compreensão de tudo, um certo coquetismo diante de uma vitrine, o passo mais lento, o sabor do dia, uma coisa intensa, um riso por dentro, o que a vida quer da gente é coragem, e agora a recompensa da coragem, a glória imensa de se saber corajosa e a ausência do medo de ter medo, e tudo era o pardal que voava direto para uma árvore em busca de alimento para os filhotinhos que piu-piu-piu esganiçavam-se em seu canto secreto.)